1. Como você reagiu ao cancelamento de sua participação na Feira do Livro de Nova Hartz?
Fiquei catatônica. Houve acusações do público desde a "isso não deveria estar em livro algum" até "não sei como foi a criação desta menina". Ora, minha mãe é militar, eu tenho mestrado e cinco livros publicados e premiados. Senti como se fosse uma vendedora de crack do lado de fora de uma creche. Soube do cancelamento já na terça-feira, mas demorei um dia inteiro para sequer conseguir processar o que havia acontecido. Depois, fui ficando cada vez mais incomodada com a total falta de voz que tive no processo, o total descaso com dinheiro dos contribuintes, a total incompetência da cidade como sistema público, a ignorância de argumentos, minha falta de voz. Falei com editores, autores, com pessoas que trabalharam com o "Enfim, Capivaras". Este é um livro que circula nacional e internacionalmente há quase um ano, nunca teve problema em lugar algum.
2. A crítica da prefeitura em relação ao "Enfim, capivaras" dizia respeito à linguagem. Qual é a função do "palavrões" nos teus livros?
Sempre houve espaço para eles na literatura, sempre houve espaço para a realidade nos livros. Madame Bovary, um clássico, tem adultério e suicídio. Ulysses, outro clássico, tem masturbação pública. Eu li "Feliz Ano Novo", de Rubem Fonseca, em pleno sexto ano: quantos palavrões tem nessa obra? E foi leitura obrigatória na escola e depois no vestibular. Gregório de Matos, no século XVII, era chamado de "Boca do inferno". Ainda no tópico de inferno, Gil Vicente apresentava "Auto da Barca do Inferno", era aplaudido por bispos em plenas igrejas. Quando se censura uma palavra, se censura uma maneira de ser. O leitor também é censurado. É como se o leitor fosse gado, que não conseguisse raciocinar em cima do que aparece. Talvez eles queiram que seja assim. Precisamos desafiar isso.
3. Qual escritor você se identifica e costuma se inspirar para escrever?
Alguns autores que são formativos para mim são Machado de Assis, Ernest Hemingway, Jorge Luis Borges, James Joyce, Angélica Freitas, Julio Cortázar, Ana Cristina César, Pablo Neruda, Elvira Vigna. Um autor em especial foi Guimarães Rosa, que comecei a ler aos 12 anos, demorei a entender, me desafiou como leitora e até hoje me desafia como ser humano.
4. O "Enfim, capivaras" foi pensado para algum público específico?
Costumo escrever para o público que me leia. Tenho quatro livros que não foram pensados especificamente para adolescentes. O próprio "Enfim, capivaras" foi um livro pensado para jovens, mas que tem leitores de 10 a 40 anos. A ideia de que existe de "literatura para tal faixa etária" é uma falácia.
5. Você acredita que, pelo desconvite da prefeitura de Nova Hartz, a tua participação na feira tenha sido uma forma de censura?
Foi censura no sentido de que eu nunca pude me defender. Se o livro não era apropriado para jovens (que eu discordo), por que eu não poderia falar com outra faixa etária? Por que não me pedir outros materiais meus, sem nenhum palavrão? Se o problema é palavrão, já aparecem na terceira página. Ou ela não leu o livro ou não se incomodou. Eu achei que a feira era da cidade, achei que poderia falar com membros da comunidade de todas as idades. Por que fui cancelada? Por que não fui consultada em relação a isso? Não tive direito algum de defesa ou argumentação. Se eu sou tão inapropriada assim (o que discordo), por que me convidaram em julho para cancelar uma semana antes da feira? Certos políticos, ao cortarem minha participação, disseram que foi "uma vitória das crianças". Que crianças? Nenhum livro meu é para crianças. Até agora estou esperando um parecer a respeito desse livro ser "inadequado" para um público jovem. A prefeitura nunca sequer dirigiu uma única palavra até mim. A prefeitura não falou comigo, nem um "infelizmente". A prefeitura comprou 25 livros meus e até agora ninguém sabe me dizer o que será feito com esses livros, que foram afastados de leitores no meio da leitura. Recebi mensagens de adolescentes que estavam lendo e queriam saber o final. Isso não é censura?
6. Que cenário você faz da literatura e dos leitores atuais?
Acho que estamos em um momento complicado, um momento em que não existe diálogo. Houve livros que foram proibidos e hoje são leitura obrigatória. Temos um governo (na escala desde municipal até federal) hoje que subestima sua população, que acha que as pessoas não podem ler e discordar. Acham que a população é ovelhinha que lê algo e se convence. Que acha que professores não conseguem ensinar mesmo com um livro com afirmações politicamente incorretas. Estamos num momento muito perigoso no Brasil, em que vários autores passam por isso. É de um obscurantismo medieval.
7. Por que é importante uma literatura transgressiva?
Para saber que outros mundos são possíveis. Sejam melhores ou piores. O mundo é plástico, manipulável. Um livro é importante pela empatia que gera.
8. Você acredita que ela tenha a ver com o público jovem?
Com certeza. Quando entramos na adolescência, é quando entendemos que o mundo é maior que o nosso umbigo, nossos quereres, o que gostamos e desgostamos. É aí que entra a literatura, nos mostrando universos distintos - que podemos discordar ou não.
9. Complete, a frase um livro é...
Uma revolução.
A prefeitura de Nova Hartz foi procurada pela reportagem para se manifestar sobre esta entrevista, mas não respondeu as perguntas.